30/10/09

BADALADAS - TEXTO Nº 39 - 9 OUTUBRO 2009









Exemplo de ambulância móvel concebida por Dominique Larrey



UM CIRURGIÃO NA FRENTE DE BATALHA


DOMINIQUE JEAN LARREY


MANUELA CATARINO



A memória histórica tem por hábito salientar as figuras dos homens decisores das grandes batalhas enquanto outros ficam na penumbra, acabando num maior ou menor, mas injusto, anonimato. O tempo, porém, serena paixões e permite a análise com outra lucidez sobre os factos, acções e personagens menos conhecidas, mas intensamente presentes, no desenrolar dos acontecimentos.

Esta breve introdução permite-nos retomar o olhar sobre um outro lado das campanhas militares que envolveram a França napoleónica e a Península Ibérica no início do séc.XIX, sob uma perspectiva talvez menos conhecida, mas não menos importante para o desenlace dos conflitos – a assistência médica aos feridos, na frente de batalha, protagonizada pelo cirurgião militar Dominique Jean Larrey.

Nascido a 8 de Julho de 1766, em Baudéan (perto dos Altos Pirinéus), segundo filho de um modesto cordoeiro, inicia os rudimentos escolares com o pároco local. Aos treze anos assume o gosto pelos estudos médicos e junta-se ao tio Alexis Larrey, cirurgião chefe em Toulouse. O seu percurso estudantil é notável e cedo recebe as primeiras distinções académicas. Uma breve passagem pela marinha, apesar da riqueza da experiência, não colhe o seu entusiasmo e regressa a Paris. A agitação política que percorre a França galvaniza o jovem Larrey e em 1794, com vinte e oito anos, o posto de cirurgião-chefe do Exército da Córsega irá permitir-lhe travar conhecimento com o igualmente jovem general Bonaparte.

A vida de ambos ficará indissoluvelmente ligada, já que Dominique Larrey estará presente durante mais de vinte anos nas campanhas napoleónicas, suscitando a admiração de todos quantos acompanham a sua acção no campo de batalha, e o reconhecimento do próprio Napoleão.

A obra Mémoires de Chirurgie Militaire et Campagnes, que redigiu entre 1810 e 1812, testemunha de forma eloquente as suas práticas pioneiras nos cuidados médicos de urgência, graças ao sistema, por ele idealizado, das ambulâncias cirúrgicas móveis. Os conhecimentos precisos de anatomia influenciaram a sua decisão em querer alterar o padrão de socorro aos feridos em combate. A prática da cirurgia, na frente de batalha, e a posterior remoção do paciente numa ambulância (ver Fig.1) para local mais seguro permitiu a sobrevivência de numerosos feridos, ainda que por vezes as amputações de membros atingissem números elevados. Contudo, para Larrey, a diferença assentava num humanismo e dedicação desconhecidos no mundo militar – cuidar dos homens, soldados ou civis, independentemente da sua nacionalidade ou posto militar…

Dominique Larrey não esteve em Portugal mas participou na campanha de Espanha, integrado no exército de Murat, como cirurgião-chefe, entre 1808 e 1809. As críticas que faz ao estado deplorável da assistência feita nos hospitais espanhóis leva-o a utilizar as suas “ambulâncias voadoras” para minimizar as baixas ocorridas em batalhas como Burgos ou Somo-Sierra. Mas o seu espírito humanitário vai mais além e, em Valladolid, chega a solicitar a criação de um hospital destinado ao inimigo (espanhóis e ingleses) para tentar irradiar a epidemia de tifo que se propagava rapidamente, e que ditará o seu regresso a Paris.

A estrela de Napoleão vai conhecendo o sentido descendente rumo à abdicação de 1814, mas Larrey só em 1818, com 49 anos, verá terminada a sua carreira militar activa. Sobreviverá a Bonaparte permanecendo seu indefectível admirador, recebendo em troca o elogio que consta do testamento datado de 15 de Abril de 1821 : …c’est l’homme le plus vertueux que j’aie connu.

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